terça-feira, 21 de junho de 2011

Heranças

Ainda no século XXI a sociedade vive sob olhares julgadores em relação às suas escolhas, seus gestos e sua sexualidade. Carregamos uma verdadeira herança de costumes impostos por nossos antepassados que, mesmo depois de tantos anos, continuam regendo uma sociedade dividida por gêneros, poderes e funções. Mesmo assim, um histórico de significantes mudanças vem dando uma nova cara ao pós-modernismo.
Nestas mudanças podemos incluir alguns exemplos de grande impacto: a presidenta (não só a mulher no poder supremo de um país, como também a nova palavra que entra em nosso dicionário), com isso “mostrando” que a mulher não é inferior ao homem; o presidente negro na maior potência do mundo, onde acrescenta que não há diferenças entre os seres humanos; e as leis em prol as relações homoafetivas e seus resultados positivos na mídia, uma vez que as novelas e filmes começam a incluí-los em suas protagonizes, mostrando, além do respeito ao próximo, que a atual busca se dá em um companheiro que se adéque com as suas convicções, independente se dará continuidade ao seu sangue (pelo menos não pelo modo convencional).


De fato, não podemos esquecer que todas essas e as demais mudanças, aqui não citadas, passaram e ainda passam por um processo árduo de aceitação. Não conseguimos esquecer os limites impostos por nossos antepassados tão facilmente, seria como tirar o garfo de nossas mãos e dar objetos que jamais pensaríamos que fossem úteis para nos servir, mesmo sendo estes mais eficazes.

Temos inúmeros pontos para debater sobre as “formas impostas”, porém voltarei meu pensamento para a diferença de poder entre homens e mulheres, dando ênfase ao casamento, instituído nos fins do século XIII e que nos faz escravos até os dias atuais. Além de concentrar-me nas escolhas que ainda fazemos em prol da nossa melhor aceitação na sociedade. De acordo com Michel Foucault, na obra História da Sexualidade I: "Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele nos sujeitaríamos ainda hoje. A pudicícia imperial figuraria no brasão de nossa sexualidade contida, muda, hipócrita.” (pg. 9)

O casamento é uma invenção cultural, pois antes do ano mil ele e o amor não eram a “mesma coisa”.  Historicamente, o casamento sempre foi uma aliança material: assegurar ou evitar guerras. Já o amor, é a roupagem social da natureza biológica. Quem juntou casamento com amor foi a Igreja e, por isso, a união nunca deu completamente certo. (MORAIS, Maurilton)

Na Idade Média fora instituído o Código de Comportamento Coletivo, conjunto de regras que aspiravam inquebráveis, onde nele definir-se-iam o estatuto do feminino e o do masculino, com seus respectivos funções e poderes; substituiriam à filiação materna à filiação paterna; e indicariam, entre todas as uniões possíveis, as únicas legítimas, as únicas consideradas suscetíveis de garantir convenientemente a reprodução do grupo. É nesta época então que nasce a instituição chamada “Casamento”. A sexualidade é encerrada de maneira cautelar, sendo transferida para dentro de casa, para o meio da família conjugal. A sexualidade agora tem uma única função: a reprodução. (FOUCALUT, Michel)

Podemos perceber as divisões impostas por este “Código de Comportamento Coletivo” nos dias atuais. Como, por exemplo, a questão da diferença salarial, que assola o nosso Estado, que é considerada uma das maiores do Brasil. De acordo com uma reportagem feita pelo jornalista Felipe Pereira em maio de 2011, “a remuneração média delas no mercado formal foi 30% inferior em 2010, e o desnível tende a crescer”. Neste estudo, feito recentemente pelo repórter do jornal Diário Catarinense, do Grupo RBS, mostra claramente o quanto está presente a herança trazida das idades antiga e medieval, ou seja, de mais de dez séculos. Em sua matéria ele ainda detalha: “Ao todo, 15,7% dos homens com nível superior têm postos de chefia contra 11,9% das mulheres com a mesma formação, que chegam a este patamar na carreira”.

Em uma rápida pesquisa na internet conseguimos encontrar muitos estudos que vão apontar que isso ocorre pelo fato de que os homens optam por carreiras no campo de exatas, enquanto as mulheres preferem as áreas de humanas e saúde. E nesta hora me vem na memória alguns títulos de livros do nosso século, intitulados de auto-ajuda destinados para as mulheres: “Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?” e “Por que os homens mentem e as mulheres choram?”. Incrivelmente há uma semelhança aqui e, pode ter certeza, esta divisão entre os sexos, onde a fraqueza é feminina e a virilidade é masculina, vêm lá do início do ano mil.

Não tem como falar de casamento sem falar de poder, e também não há possibilidade de falar de poder sem falar da imposição do casamento. Além disso, não tem como não fazer uma abordagem sobre sexo, sendo que este foi deixado como exclusivo da reprodução, uma vez que o seu uso era visto como pecado pela igreja católica, que teve papel importante na formação dessa ideia juntamente com a magistratura da época.

O grande prosador do cristianismo, Santo Agostinho, segue com um dilema em Confissões, sendo que os pregadores da nova fé enfrentavam um grande problema em relação ao casamento: “como conseguir manter um dos princípios básicos do cristianismo aceites na forma do ‘crescei e multiplicai-vos’ sem considerar a atração ou o prazer sexual?”. Realmente complicado. E em busca de solução desse conflito, Santo Agostinho terminou por gerar sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal.

“Donde viria essa miséria que nos cerca, essa corrupção, essas heresias e a crassa maldade? Existia na sociedade uma mancha inapagável motivada pelo pecado original advindo do impulso sexual, que atormentava o homem até a morte. Essa era a maldição que acompanhava Adão e Eva e seus descendentes desde a queda do Paraíso.” (Confissões)
 
Para Santo Agostinho, na situação paradisíaca não havia tensão entre o impulso e o ato sexual. Foi a partir do "pecar" dos nossos primeiros pais (Adão e Eva) que essa “desgraça” começou. Parecia-lhe que o casamento, a relação sexual e o Paraíso eram tão incompatíveis como o Paraíso e a própria Morte. Desse modo, a sexualidade permanecia como o indicador da queda do homem, do seu triste declínio, fazendo com que o homem deslizasse cada vez mais para baixo. Dar ênfase à natureza física era pecar, o homem deveria preocupar-se e ocupar-se com a alma. Ele concordava que os casais deveriam gerar filhos, mas que o fizessem conscientes que estavam cometendo um ato de rebaixamento. Era algo necessário, mas humilhante, que deveria ser praticado sob uma intensa melancolia. (RODRIGUES, Álvaro). De acordo com a professora de História, especialista em Gênero, Sara F. Matthews-Grieco, da Itália, em sua obra Corpo e sexualidade na Europa do Antigo Regime, do começo do século XV até meados dos séculos XVII, “a Europa Ocidental esforçou-se para desenvolver uma visão do corpo e de sua sexualidade que fosse compatível com a ordem social, o respeito pela religião e o crescimento da população”.

Neste novo seguimento não havia mais espaço para qualquer outro tipo de amor, a não ser pelo amor a Deus e pelo que este pregava. E, de acordo com a Igreja, amar a Deus era respeitar o casamento. Como o sexo era visto como o grande pecado do ser humano, e mesmo assim deviam-se seguir os passos descritos na Bíblia, que diz “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra.” (Gn 1, 28), a Igreja “consentiu” o sexo no casamento apenas para a procriação e mesmo assim, não poderia haver prazer, pois era um ato humilhante. Além disso, antes, durante e depois do ato, ambos deveriam pedir perdão pelo sacrilégio. A punição era pelo fato de sentir prazer, independente de qual maneira fosse. De acordo com Platão “Seu objetivo não é reconduzir a paixão à reta natureza, permitindo que se amem somente as mulheres, mas suprimir toda paixão, autorizando apenas a sexualidade de reprodução.”

Sara F. Matthews-Grieco discorre sobre a tentativa bem sucedida da Igreja em relação à repreensão do sexo, na obra “Corpo e sexualidade na Europa do Antigo Regime”: “(...) O corpo parece principalmente sob dois aspectos. Principalmente, sob o aspecto do costume e da legislação: tanto um como a outra buscam disciplinar e dirigir suas funções reprodutivas, reprimindo os impulsos desordenados da sexualidade por razões que participam ao mesmo tempo do social e do espiritual. Em segundo lugar, o corpo aparece como o agente (ou a vítima) de atos sexuais transgredidos e, portanto, como lugar privilegiado de “crimes” contra a religião, a moral e a sociedade (...)”

Nesse contexto, os casamentos só terão um motivo para serem realizados e esse motivo não tem qualquer relação com o amor. Os relacionamentos davam-se por contratos, pelas relações de mútua troca, ou seja, por conveniência. Por não existir o sentimento amor, no qual hoje conhecemos, e não poder haver relações por puro prazer, o casamento foi instituído pela Igreja como um instrumento de organização social e divisão de poderes.
 
A Igreja tinha o objetivo claro de instituir o casamento em prol de um “encerramento” da fornicação. Os prazeres da carne deveriam ter fim e o sexo só teria uma única função: a procriação. Ou seja, encerram-se aí todos os tipos de relacionamento que não tinham a função de gerar frutos, incluindo também o toque ao próprio corpo.

Não precisamos ir muito longe para ver a força da Igreja na sociedade. E realmente, como disse Michel Foucault, vivemos ainda hoje envoltos num pudor imposto há séculos atrás. Ainda hoje olhamos com indiferença ou desprezo pessoas que não corretamente nos trilhos definidos como corretos. Se o que era posto em evidência era o casamento pela comodidade, pela procriação e perpetuação do sangue, hoje nossa sociedade enxerga além. As ambições são diferentes e o sentimento que segura uma relação a dois é diferente, não há porque continuar passando para as novas gerações ensinamentos que não serão instrumentos válidos para esta nova era. Sabendo que tudo não passa de uma invenção cultural, podemos observar e agir diferente.

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